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Após normalizar suas relações com a Argentina e dar os primeiros passos para restaurar os laços diplomáticos com a Colômbia, a Venezuela agora volta seus olhos para as eleições presidenciais do Brasil. A votação de outubro, segundo as últimas pesquisas, se encaminha para uma disputa protagonizada pelo atual presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidatos que não apenas simbolizam projetos de política externa antagônicos entre si, mas que possuem um histórico completamente diferente no tratamento com o vizinho bolivariano.
Nos últimos quatro anos, as relações entre Caracas e Brasília foram marcadas pelas hostilidades de Bolsonaro, período em que o presidente de extrema direita rompeu diplomaticamente com a Venezuela, apoiou tentativas de golpes encabeçadas pela direita venezuelana e se alinhou com as estratégias dos EUA. Política e economicamente, os laços entre Brasil e Venezuela se deterioraram e não são nem de longe o que foram durante os mandatos petistas, marcados por acordos bilaterais, intenso fluxo comercial e afinidades ideológicas entre os governos.
Entretanto, apesar da tradicional aproximação de Lula com Caracas e das agressões de Bolsonaro aos chavistas, a retomada das relações entre Brasil e Venezuela não deve depender do resultado eleitoral. Essa é a opinião de Pedro Barros, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e estudioso das relações entre Brasil e Venezuela, que acredita que a diplomacia brasileira deve rever a postura que adotou no período recente.
"Eu acho que está se formando um grande consenso no Brasil, com diferentes atores, inclusive próximos ao atual governo, de que foi um grande erro ter fechado a embaixada e retirado todo o pessoal governamental do Brasil na Venezuela. Então, mesmo se as relações diplomáticas não forem plenamente restabelecidas, um cenário que eu considero pouco provável, as relações entre Brasil e Venezuela não vão piorar", diz Barros, em entrevista ao Brasil de Fato.
Do lado venezuelano, que assistiu um de seus maiores parceiros comerciais e políticos na região se afastar enquanto era governado pela direita, qualquer reaproximação que ocorra entre Caracas e Brasília seria vista como um fator positivo. Segundo Jorge Forero, pesquisador do Centro de Investigação e Estudos Fronteiriços da Venezuela, a retomada de relações é "uma necessidade dos povos" e deverá encerrar o reconhecimento do Brasil ao ex-deputado "autoproclamado" presidente Juan Guaidó.
"O essencial é interromper uma política sem sentido, criada na época do ex-presidente Donald Trump, de criar o Grupo de Lima, instaurar um processo de isolamento da Venezuela e, o mais absurdo de todos, reconhecer um governo que não tinha nenhum tipo de legitimidade", afirma.
Limites e oportunidades para novas cooperações
Durante os mandatos de Lula (2003 - 2010), Brasil e Venezuela experimentaram uma aproximação diplomática e econômica até então inédita entre os dois países. Além de um intenso intercâmbio comercial que bateu recordes históricos, o relacionamento entre Caracas e Brasília nesse período ficou marcado por acordos de cooperação que envolveram assistência técnica de diversas instituições públicas brasileiras.
Órgãos como a Caixa Econômica Federal, IPEA e Embrapa chegaram a instalar escritórios na Venezuela para aprofundar os convênios firmados entre Lula e o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez. Aliado a isso, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) atuou como financiador para projetos realizados por empresas brasileiras no país vizinho, majoritariamente nas áreas de infraestrutura e energia.
No quesito comercial, os países mantiveram um robusto fluxo de importações e exportações, sendo que a balança se manteve superavitária ao Brasil. Entre 2003 e 2006, as exportações brasileiras à Venezuela passaram de US$ 600 milhões para US$ 3,55 bilhões. O pico das vendas do Brasil ao país vizinho foi registrado em 2008, quando as exportações atingiram a marca histórica de US$ 5,13 bilhões. Já entre os anos de 2014 e 2017, o índice passou de US$ 4,56 bilhões para US$ 469 milhões, níveis mais baixos dos que os registrados no primeiro ano do governo Lula.
Pedro Barros argumenta que mais importante do que recuperar os níveis comerciais de décadas anteriores, a urgência atual é a reabertura dos serviços consulares e o pleno restabelecimento de laços diplomáticos.
"O objetivo maior do Brasil em relação à Venezuela não é necessariamente recuperar os níveis de 2008, 2009, 2010, período de auge das relações bilaterais. O objetivo deve ser garantir a estabilidade regional e ter presença no país, e o prazo para isso é imediato, é uma decisão de governo", destaca o pesquisador do IPEA.
Por outro lado, o pesquisador não descarta a importância do governo brasileiro trabalhar para participar "tanto da estabilidade social, econômica, política e migratória da Venezuela, como também da recuperação econômica" do país. No último ano, a nação vizinha conseguiu encerrar um ciclo de hiperinflação, estabilizar o câmbio e sair da recessão que vinha enfrentando desde 2014.
"Temos visto uma maior presença chinesa, russa, de potências extrarregionais na Venezuela em um quadro de tensão global. É de interesse do Brasil evitar ao máximo que haja um confronto entre potências extrarregionais em um país vizinho e por isso é importante ter não somente uma presença de Estado, mas uma presença de negócios, uma presença cultural, aumentando a interdependência, porque isso aumenta os custos de uma presença extrarregional para as potências externas e coloca necessariamente o Brasil na discussão sobre qualquer saída para a crise venezuelana", opina Barros.
Foi também durante os primeiros mandatos de Lula que a Venezuela, então governada por Chávez, chegou a propor a criação de um "Banco Central" sul-americano, que envolveria reservas venezuelanas, brasileiras e argentinas. Outra ideia levantada pelo governo bolivariano à época foi a unificação das forças armadas sul-americanas para construir uma espécie de aliança nos moldes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Tais propostas nunca chegaram a ser publicamente rechaçadas pelo Brasil, embora o país nunca tenha sido defensor das mesmas. Buscando evitar confrontações diretas e não estremecer as relações que mantinha com Washington, o país seguiu sustentando suas visões nos órgão regionais e as propostas acabaram descartadas.
Para o pesquisador venezuelano Jorge Forero, "essas ideias seguem vigentes, mas não existem condições políticas e econômicas para que elas sejam implementadas porque a estratégia de política externa venezuelana hoje não é a mesma defendida por Chávez".
"Existem alguns elementos de integração que se mantêm, mas essa visão estratégica de mudar a arquitetura das relações políticas e econômicas não está dada", disse.
Forero ainda argumenta que nos últimos anos, por conta do isolamento que viveu na região sul-americana, a Venezuela voltou seus esforços diplomáticos para se aproximar e firmar acordos com países euroasiáticos, como China, Rússia e Irã, o que marcou uma nova visão na diplomacia do país.
"Eu não sei se a política externa da Venezuela vai mudar em relação à construção dessa narrativa multipolar, da qual eu particularmente não concordo. Mas o que é certo é que isso foi um reflexo do movimento que ocorreu na América do Sul nos últimos anos, que colocou a Venezuela como um "leproso", se tomaram medidas supostamente em nome da democracia que terminaram fazendo com que o povo venezuelano sofresse as consequências dessa política de isolamento", diz.
Lula e Bolsonaro: integração ou isolamento
A postura diplomática do Brasil para a América do Sul durante o governo Bolsonaro, hostil a governos de esquerda e alinhado à Casa Branca, acabou isolando o país de instâncias regionais e simbolizou uma ruptura com posições tradicionais do Itamaraty. Além disso, agiu na contramão da diplomacia exercida por Brasília nos governos petistas, que apostaram no fortalecimento de instâncias sul-americanas.
Nesse sentido, a relação com a Venezuela foi uma das mais desgastadas pelo giro ultraconservador que a chancelaria brasileira deu no último período. Além de deixar de reconhecer o presidente Nicolás Maduro e fornecer apoio material e político ao "interinato" de Guaidó, o governo Bolsonaro terminou de abandonar instâncias de diálogos multilaterais impulsionadas nos governos do PT, que já vinham sendo escanteadas após o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016.
No âmbito regional, o Estado brasileiro abandonou iniciativas construídas nos mandatos anteriores, como a Unasul e a Celac, para priorizar instâncias regionais como o extinto Grupo de Lima, que reuniu governos de direita para pressionar a Venezuela.
Segundo Barros, a recuperação desses espaços de diálogo não deve obedecer a uma lógica do passado e deve se ajustar de acordo com novas agendas, colocando em debate questões como a crise climática, por exemplo.
"O que eu considero mais adequado é retomar os espaços de governança regional, mais do que propostas pontuais. Isso pode ser feito reconstruindo, por exemplo, a Unasul, mas há outras possibilidades de retomada da governança regional. E essa retomada deve ser liderada pelo Brasil com a participação de todos os países", diz.
Brasil de Fato